quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

DOSTOIÉVSKI E NIETZSCHE: ENTRE O SUPER-HOMEM E O HOMEM EXTRAORDINÁRIO


De autoria do estudante de filosofia da UNB João Victor, colhido no sítio Literatortura:

Fiódor Dostoiévski é considerado o escritor filósofo por excelência. Suas obras são um manancial de reflexão filosófica sobre diversos temas. Entre seus escritos, vários deles consagrados como clássicos da literatura universal, destaca-se aquele romance que é, para mim, seu maior trabalho: Crime e Castigo.
Crime e Castigo narra a história de um jovem estudante de Direito, Raskolnikov, que passa por severas dificuldades financeiras e comete um assassinato para supri-las. A investigação do assassinato e a reação de Raskolnikov ao próprio ato conduzem o enredo. Entretanto, o ponto mais interessante da obra é o que leva o jovem a cometer o crime. Raskolnikov havia publicado, algum tempo antes do assassinato, um artigo, em que expunha sua “teoria do homem extraordinário”. É essa teoria que pretendo analisar aqui.
Para Raskolnikov, o homem extraordinário é aquele que, tendo em si a capacidade de produzir obras de imenso valor para a humanidade, tem o direito de burlar as leis morais. Ou mais profundo ainda, de simplesmente ignorá-las, para conseguir realizar o que pretende. O homem extraordinário não se submete às leis que governam os outros homens, pois está acima delas. O exemplo repetidamente lembrado por Raskolnikov ao longo do romance é Napoleão, que não hesitou nem um momento em cometer todos os crimes que cometeu para chegar ao poder e governar. Essa ausência de remorso, esse sentimento de poder ser imoral e, ao mesmo tempo, de que não se é imoral, pois se está acima da moralidade, é o que caracteriza o homem extraordinário.
Raskolnikov pensou ser um homem extraordinário. Refletindo sobre sua mãe e irmã – esta última que iria se casar apenas para, com a proteção do marido rico, ajudar a mãe a viver e o irmão a concluir seus estudos – Raskolnikov pensou que não poderia esperar seus estudos terminarem, levar uma vida medíocre de professor enquanto ganhava alguns trocados. Precisava de dinheiro imediatamente, para poder realizar suas grandes obras. Por esse motivo, Raskolnikov planeja e executa o assassinato de uma agiota. No entanto, ele acaba matando, também, por acidente, a irmã da agiota, uma moça inocente e gentil. Raskolnikov, então, entra num circulo de insanidade e culpa crescente, enquanto tenta esconder tal sentimento de quem investiga o crime.
Não quero contar nada mais sobre a história, para não impedir que os leitores que não conhecem a obra queiram lê-la. No entanto, um ponto importantíssimo merece menção: Raskolnikov se culpa pelo assassinato.
Isso demonstra, de primeira, que Raskolnikov, embora tenha criado a ideia dos homens extraordinários, não poderia ser colocado entre eles, pelo simples motivo de que ele sente culpa pelo que fez, apesar de tê-lo feito por um motivo maior, grandioso.

A tese de Raskolnikov é muito interessante. E, agora que ela foi apresentada, tenho certeza que alguns dos leitores estão pensando sem parar no “Super-Homem” de Nietzsche. E estão corretos. Mas, não cometamos um erro. É Nietzsche que se inspira em Dostoiévski e não o contrário. O fervor de Nietzsche pelo gênio de Dostoiévski não era segredo (embora, é claro, houvesse ressalvas, como sempre havia com os elogios do filósofo dos Alpes).
O conceito de “Super-homem” que Nietzsche apresenta, no entanto, é um pouco diferente do homem extraordinário que Dostoiévski põe na boca de Raskolnikov. O Super-Homem é, para Nietzsche, o estágio final da humanidade, que não é, senão um preparo, para aquele. Esse super-homem também não se rende às leis morais, nem sente remorsos, mas por um motivo diferente. Para Nietzsche, o super-homem é o fim da luta entre a moral dos escravos (cristianismo) e a moral dos aristocratas. O ser humano deve, por força da sua vontade, elevar-se acima da humanidade. Deve desenvolver sua vontade de poder, vontade de descarregar suas forças e dar o maior alcance às próprias capacidades. Ele irá superar os velhos valores e criar novos, que lhe sirvam. O Super-Homem de Nietzsche rejeita tudo e fica apenas com sua própria vontade, sem aceitar nada que o impeça de ser aquilo que ele é.
A grande diferença, para mim, nas noções do “super-homem” e do “homem extraordinário”, é que Raskolnikov não nega que a moral seja aplicável aos que não são homens extraordinários. Mas apenas que ela não se aplica a estes, enquanto Nietzsche nega a moral de todos os modos, defendendo que é por fraqueza que aceitamos a moral. Além disso, o homem extraordinário, aparentemente, segue uma moral [mora, moral, moral haha], apenas deixa de segui-la quando ela entra em conflito com seus interesses. É uma diferença sutil, penso eu, pois parece que Raskolnikov também quer crer que a moral é uma fraqueza, o que me faz pensar, por vezes, que não haja grande diferença entre Nietzsche e Dostoiévski, nesse ponto específico. Mas Raskolnikov não pôde abandonar a moral. E isso merece destaque.
Ele não pôde, e, embora seja um personagem, isso mostra um aspecto interessante da teoria de Nietzsche: a sua aparente impossibilidade de realização. Não consigo ver um homem se tornar um Super-Homem nietzschiano de modo algum. Ou melhor, talvez eu consiga, mas esse seria um psicopata. Honestamente, o remorso não é propriedade absoluta do cristianismo, embora essa religião tenda a reforçá-lo. Temos outras explicações para o remorso, talvez até melhores (Darwin, por exemplo, fala do remorso advindo de não fazer o que seria melhor para a sobrevivência da espécie) que a de Nietzsche. Para que se configure um Super-Homem na Terra [um homem completamente sem remorsos e sem moral que não seja sua criação para extravasar sua vontade de poder], é preciso um psicopata, um homem que, devido a uma patologia, não sente remorso e somente se importa com o que diz respeito aos seus interesses. Podemos dar alguns exemplos, então, de super-homens que já existiram ou existem.
Temos, também, alguns exemplos do que Raskolnikov chamou de “homens extraordinários”. Mas esses, na minha opinião, não diriam que a moral não existe ou não seguiriam nenhuma moral, apenas a burlariam para seus próprios fins.
Se eu estiver certo, parece muito pouco desejável que existam super-homens. Na realidade, sempre me pareceu que a querela de Nietzsche com o cristianismo, acrescida do seu radicalismo extremo em tudo que falou, fez com que ele simplesmente descartasse a moral por não concordar com a moral cristã (e também budista, em vários pontos). Algo imprudente, na minha opinião.
Mas, Crime e Castigo é um romance extraordinário, eu diria.
E, então, o que acharam? Que tal o super-homem e o homem extraordinário? Concordam com a minha ideia? Não deixem de dar sua opinião e, claro, de curtir o post. Espero que tenham gostado do texto. Obrigado!