Uma
questão essencial que permeia o pensamento de todo e qualquer historiador,
assim como de todo profissional que trabalha com ciências humanas (sociólogo,
antropólogo, cientista político, economista, geógrafo, jurista) é a questão da
imparcialidade. Como se posicionar diante de algo que nos diz respeito
diretamente e do qual fazemos parte: o ser humano, a sociedade humana, a
cultura humana. Aprende-se cedo nos bancos das faculdades, que ser imparcial é
impossível para um cientista da humanidade. Como assim? Para responder
corretamente a essa pergunta, é necessário explicar o que significa ser
imparcial, o que significa ter imparcialidade.
Para os
positivistas do final do século XIX, como Leopold von Ranke, ser imparcial
seria fundamental para o historiador, pois pra ele, “ao adotar a
imparcialidade, o historiador poderia chegar a uma verdade histórica objetiva.”
(
http://diegoricoy.blogspot.com.br/2010/03/funcao-do-historiador-papel-do.html).
Ou seja, pra ele, a História seria como uma colônia de bactéria num
laboratório. Aos poucos foi se percebendo que essa “verdade” histórica é um
mito. Para Georges Duby, por exemplo, “contrapondo-se com os ideais
positivistas, a objetividade na História é um mito já que em qualquer narrativa
histórica há uma subjetividade de quem a escreve, sendo qualquer tipo de
documento “contaminado” de juízo de valores e influências de seu tempo. Já na
escolha de certo objeto de estudo, o historiador emite juízo de valor, não
ficando imparcial diante a seleção de seu tema de pesquisa.” (IDEM) Ou seja, a
pretensão de imparcialidade já nasce condenada pela parcialidade das escolhas
humanas. Um historiador, quando escreve ou dá aulas, um sociólogo, ou mesmo um
juiz, não podem, ou melhor, não conseguem, se dar o luxo de serem neutros,
imparciais. Isso é bobagem, é ilusão.
Quer dizer
que toda produção historiográfica, sociológica, jurídica, etc., não merece
crédito? Quer dizer que todo historiador é um panfletário? Não é bem assim! É
claro que existem aqueles que, por tão apaixonados, negam a factualidade de
determinados assuntos. Isso não é só ser panfletário. Eu chamo isso de
prostituir a História. Um professor, por mais católico que seja, não pode negar
a Noite de São Bartolomeu, por exemplo; por mais marxista, não pode negar os
crimes de Stalin ou de Mao Tsé-tung; por mais liberal, não pode negar que a
Crise de 1929 foi contornada pelo Estado. O historiador panfletário, cafetão da
História, mente, inventa uma historinha só sua, usando-a a seu bel prazer no
intuito de ludibriar as mentes dos leigos ou dos ignorantes.
Dito isso,
conclui-se que o historiador não pode se dissociar de seu meio, de sua
experiência individual, de suas ideias políticas, de suas visões de mundo, e
mesmo assim fazer um trabalho científico, um trabalho comprometido com a
verossimilhança dos fatos. Até porque, achar que um homem pode ser neutro sobre
a história, sobre a humanidade, é um extremo paradoxo. O homem não é um robô,
não é uma pedra. É um animal político, como diziam os gregos. Tem uma história
de vida, que se insere na História de sua comunidade. É um erro achar que um
historiador deva ser um homem isento de juízos de valor. Mesmo com a
justificativa de fazer com que os outros busquem sua própria criticidade. Até
porque ser crítico, significa tomar posição. Não se pode querer que os outros
façam isso, se o próprio historiador não o faz. O historiador não pode abster
os outros de sua visão, de sua opinião. Que não é a única? Com certeza! Que pode
ser equivocada? Com certeza! Daí a necessidade de interferir, de não deixar
passar. Dizer: “Ah, eu deixo que os outros tirem suas próprias conclusões,
pensem livremente, sem minha intervenção” é se abster de ser historiador! Quem
assim o faz, deveria procurar outra profissão. Se minha função é deixar os
outros à própria sorte intelectual, que serventia tenho eu? Da mesma forma que
é errado transformar a História num panfleto, escolhendo somente o que nos
interessa, é errado também posarmos, nós historiadores, como árbitros neutros.
Se assim fosse, atingiríamos um estágio que nenhum ser humano, nem o mais frio
e objetivo dos juízes jamais alcançou: o estágio da neutralidade absoluta, o laissez-faire intelectual, onde mestres,
livros, a política, as discussões, os debates, são desnecessários. Cada um
pense e faça o que quer. O historiador não se intrometa. Só narre, e pronto! É
impossível!
Tão
impossível, que qualquer pessoa que tente fazê-lo não passará da “quarta página”.
O que nos faz chegar à conclusão que além de ser um equívoco filosófico,
epistemológico, esse discurso da neutralidade também é um sofisma cretino. Uma
desculpa barata! Todos esses pretensos imparciais, pretensos neutros, são
cheios de ideias e opiniões, e as defendem convicta e fervorosamente como
qualquer um de nós. O que eles abominam não é a parcialidade, mas a convicção
alheia em defender uma opinião contrária à sua. É igual àquele cara que diz que
direita e esquerda não existem mais, simplesmente porque tem medo de se assumir
de direita, e quer passar uma imagem de não-alinhado. O pretenso neutro sofre,
na verdade, de uma covardia extrema, um medo de assumir o que realmente pensa.
Assumir algo, abraçar algo, impõe a quem o faz responsabilidades, pesos, que
esse tipo de gente não quer aceitar, preferindo viver num mundinho próprio,
inumano. Pois nada mais humano que a convicção, que a parcialidade, que a
paixão. O segredo é saber dosar isso! Não ser escravo de uma doutrina, de uma
corrente, de uma ideologia, não significa, de forma nenhuma, que você não siga
uma. Quem tem a pretensão da neutralidade, sempre esconde algo que, um segundo
ou outro (e quando eu falo de segundo, é segundo mesmo), escapa nas
entrelinhas!