Quando a senadora Kátia Abreu, eleita
por Tocantins com um discurso de apoio ao agronegócio e ao latifúndio, decidiu
deixar o Democratas, lançou um manifesto, propalado de forma entusiástica por
setores da grande mídia, em que apresentava suas principais bandeiras. Uma
delas me chamou fortemente a atenção, não pela bandeira, mas pelo argumento: a
senadora disse ser defensora intransigente da economia de mercado, pois ela é a
única capaz de erradicar a pobreza pelo fato de ser a única a produzir riqueza.
Uma afirmação, no mínimo, interessante, pois trás à tona algo que nunca
imaginei possível: o liberalismo econômico possui profundos interesses pela
justiça social.
Pra começar, quero dizer que acho
bastante interessante quando vejo um político dizendo que as soluções para os
problemas dependem do sistema econômico. Principalmente quando esse sistema
defende a não interferência da esfera política na gestão econômica, caso do
liberalismo. É absurdo achar que um sistema econômico por si só é capaz de
erradicar a pobreza. Isso vai depender de uma outra gama de fatores, que vão
depender irremediavelmente do fator político. O que erradica a pobreza, ou a
diminui consideravelmente, são políticas públicas de qualidade, coisa que só
pode ser oferecida por um governo e por uma legislação que proteja as pessoas
da exploração, causa primordial da pobreza. Ao se ter isso, qualquer sistema
econômico pode ser usado. Afinal, os países comunistas, de economia planificada
(planejada e com total interferência do Estado), conseguiram fazer isso. Além
do mais, como um sistema econômico como o liberal pode achar que erradica a
pobreza se ele por si só já pressupõe a existência dela? É um tremendo
paradoxo.
Logo depois a senadora justifica sua
tese ao dizer que a economia de mercado é a única que gera riqueza. Primeira
questão: riqueza para quem? Para um grupo pequeno de indivíduos, que muitas
vezes enriquecem sem produzir nada, como os especuladores financeiros. Como isso
vai erradicar a pobreza? Segunda questão: o sistema escravista ou feudal não
produziam riqueza? Produziam, e mesmo assim não erradicaram a pobreza,
considerada necessária em todos eles dentro da lógica da divisão do trabalho,
em que uns detêm os meios, enquanto outros exercem a força de produção. O
sistema econômico, principalmente o de mercado, precisa dos pobres para
consumir e trabalhar. Não pode erradicar essa situação sob o risco de deixar de
existir ou se tornar outra coisa.
Outra questão importante é notar que
as grandes crises do capitalismo, como a de 1929, são causadas pela anarquia
econômica, dogma irrefutável da economia de mercado, que pressupõe que a
circulação das riquezas deve ser gerida pelos seus próprios agentes, o
comprador e o vendedor, de acordo com seus interesses particulares. É um
sistema baseado nas ambições, vantagens, e na falta de benevolência (palavras
de Adam Smith, seu ideólogo principal). E depois que esse sistema acéfalo e
caótico produz a crise e a tragédia, eis que o Estado, o grande mal, aparece
para salvar o sistema e garantir que nada saia do lugar. Inclusive, claro, os
pobres.
Na sua ignorância ideológica, ou
esperteza prática, a senadora ignora o fato de que sem a interferência do
Estado, ou seja, sem leis intervencionistas que coíbam abusos, o caos econômico
gera caos social. O Estado se torna assim necessário, por exemplo, para proibir
a venda de bebidas a menores, para reprimir o comércio de drogas e para impedir
a cartelização de empresas. Não pode existir um sistema econômico sem regulação
externa, ou então o planeta fica inabitável. Mas para o puro liberal, isso não
tem importância. O que importa é a lei do mercado livre. Daí a ênfase dada à
palavra liberdade, entendida aqui como a liberdade do capitalista de conseguir
seu lucro, e nada mais. Daí também porque em vários lugares onde se instalou, o
(neo)liberalismo, ao invés de erradicar a pobreza, coisa de que só esse sistema
seria capaz, segundo a ilustre Kátia, aprofundou a dependência, a
miserabilidade, a concentração de renda, o subemprego e a marginalização. Devem
existir alternativas, e elas existem, à pura economia de mercado,
desregularizada e libertina. Alternativas mais humanas e responsáveis, que dêem
uma real solução ao problema da miséria e da pobreza extrema, assim como de
seus subprodutos, a fome, a indignidade, a marginalidade e a violência.
***
Finalizo com uma frase do economista
estadunidense Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2001,
contida no seu artigo O Fim do
Neoliberalismo?, publicado em 16 de julho de 2008 no jornal O Globo: “O mercado neoliberal fundamentalista foi
sempre uma doutrina política a serviço de certos interesses. Nunca recebeu o
apoio da teoria econômica. Nem, agora fica claro, recebeu o endosso da
experiência histórica. Aprender essa lição pode ser a nesga de sol nas nuvens
que hoje pairam sobre a economia global.”
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