domingo, 18 de dezembro de 2011

GUERRILHA: A VIOLÊNCIA COMO UM MAL NECESSÁRIO

        Se existe um período da história que fascina a todos os brasileiros hoje, esse período é a Ditadura Militar. É um período cheio de mistérios, onde a história se fazia em porões, aparelhos, gabinetes fechados ou em matas obscuras, sem falar na censura, que impunha um silêncio sobre tudo o que acontecia à imprensa, fazendo com que as narrativas fossem sempre enviesadas, embaraçando a verdadeira realidade. Além disso, a Ditadura espelha de forma gritante e violenta toda a luta política vista ainda hoje. 
            Boa parte dos personagens da Ditadura ainda está aí, desde aqueles que a apoiaram até aqueles que se opuseram a ela, o que torna o assunto, além de fascinante, extremamente atual. A guerra ideológica continua, com outros nomes, outras máscaras, mas com o mesmo objetivo. A direita não possui mais o pleno poder nem a prerrogativa de, através da já citada censura, impor o discurso único. Nem precisa disso. A imprensa, excetuando-se alguns poucos corajosos profissionais, continua, mesmo sem a mordaça legal, proliferando o discurso único, principalmente quando o assunto são os movimentos sociais, os partidos e governos de esquerda e os grupos armados de resistência, estes últimos, o alvo preferencial da crítica anti-esquerdista quando se fala no período supra-citado.
            Há algum tempo vem se tentando desmoralizar esses grupos, criticando-os por optarem pela violência e por utilizarem-na de forma indiscriminada e desumana. São chamados de terroristas, termo um tanto complexo para ser utilizado de forma tão definitiva. A questão é que a mídia hoje simplesmente repete o que dizia no período de exceção, com a diferença que não é mais possível esconder as barbaridades cometidas nos porões.
            Como querem ser considerados democratas, velam o seu apoio à Ditadura, quando nas entrelinhas chegam quase a justificá-la como algo necessário a reagir contra a violência dos terroristas subversivos e contra o ainda hoje temido “perigo comunista”. Conversa mole de quem não tem coragem de dizer o que realmente pensa. Pode-se dizer que o auge disso foi a publicação pelo jornalista Reinaldo Azevedo, no seu famigerado blog, hospedado no sítio da revista Veja (veja.abril.com.br/blog/reinaldo/), da lista de pessoas mortas pelos “terroristas de esquerda” no Regime Militar (publicada em quatro partes no dia 12 de janeiro de 2010), lista essa que ele foi buscar no sítio do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma). Esse grupo, cujo patrono é o ex-presidente Emílio Médici, se formou como uma reação à publicação do livro Brasil: Nunca Mais, organizado por uma equipe liderada pelo Arcebispo Emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Cardeal Arns, e pelo pastor presbiteriano paranaense Jaime Wright, e que contava em pormenores as atrocidades cometidas pelos órgãos de segurança, muitas vezes contra pessoas que faziam oposição pacífica ou mesmo contra aqueles que não tinham nenhum vínculo político.
            Ao fazer uma análise minuciosa desta lista, logo percebemos algumas incongruências, que corrompem horrorosamente o texto e que induzem leitores mais incautos ao erro. A primeira refere-se ao fato de a lista ter sido colhida num sítio (ternuma.com) formado por um grupo de pessoas extremamente interessadas em justificar a Ditadura e encobrir os crimes cometidos em nome e com a conivência dos governos militares, alegando que a força da ação subversiva obrigou as Forças Armadas a quebrar a legalidade e a mergulhar o Brasil na tragédia em que o mergulharam. Ora, qualquer pessoa sabe que quem subverteu a ordem constitucional não foi a esquerda. Sabe também que os comunistas tinham que trabalhar na clandestinidade já desde 1947, quando o registro do PCB foi cassado “democraticamente”, e que após 1964 nem o movimento estudantil, nem os sindicatos, nem os partidos, possuíam mais liberdade para atuar dentro da legalidade, dando a seus integrantes três opções: baixar a cabeça e aceitar as novas regras, se tornar indiferente e não se meter mais em questões políticas ou partir para formas de luta mais agressivas visando chegar ao poder e por em prática suas idéias. Os que defendem a ditadura têm que aceitar que foi ela quem criou a chamada “subversão”, e não o contrário.
            A segunda incongruência refere-se ao fato de que a lista é apresentada como sendo “a verdade”, ou seja, não haveria por trás do artigo, carregado de ódio e de revanchismo, nenhum viés ideológico, nenhum interesse. Ele seria neutro, objetivo. Essa neutralidade não existe em nenhum tipo de texto, nem os do Reinaldo, nem os do Ternuma, nem os meus, ou de qualquer outra pessoa. O artigo dele é político tanto quanto este que estou escrevendo. Apresentar, portanto, versões com sendo “a verdade”, sem o devido senso crítico, é uma descarada desonestidade intelectual. Induzem o leitor ao erro. Podemos citar como exemplo da falibilidade desta “verdade”, o fato de a lista apresentar como sendo obra dos “terroristas” os assassinatos da policial Estela Borges Morato e do protético Friederich Adolf Rohmann, ocorridos durante a operação que matou Carlos Marighella. Sabe-se hoje que a tal operação não encontrou a menor resistência e que, ao contrário do que foi passado à imprensa na época, o líder comunista não disparou um só tiro naquela ocasião, como comprovam os laudos dos peritos Nelson Massini e Wilson Ferreira, constados no livro Marighella: o homem por trás do mito, de Cristiane Nova e Jorge Nóvoa (1999, pp. 195-197).
            A terceira incongruência, que complementa a segunda, é o fato de que o autor apresenta a lista como de inocentes mortos pelos grupos de esquerda. Boa parte dessas vítimas são militares ou agentes policiais, em serviço ativo, muitos deles trabalhando em estabelecimentos nos quais se praticava tortura. Não são inocentes, portanto. Mesmo alguns civis, como o industrial dinamarquês Henning Boilesen, foram mortos por financiarem o esquema clandestino de seqüestro e tortura de inimigos do governo, conhecido como Operação Bandeirantes (Oban).
            A quarta incongruência consiste em que o autor não contextualiza historicamente a violência dos grupos de esquerda, alijados do processo político convencional e tendo que escolher entre o silêncio ou a luta. Quem optou por esta última, sabia o que o estava esperando. Se fosse preso, seria morto na prisão, não antes de passar pelos mais bárbaros tormentos. O temor de que isso acontecesse tornava os militantes mais aguerridos em resistir à prisão. Quem não o faria contra um torturador? Qualquer pessoa em sã consciência sabe que é melhor a morte que a tortura.
            Outro exemplo dessa falta de contextualização é quando o autor conta, em riqueza de detalhes e com inflamação retórica, o assassinato do tenente da PMSP Alberto Mendes Júnior a coronhadas de fuzil, perpetrado a mando de Carlos Lamarca em maio de 1970. O ato, que foi classificado como covarde e próprio de um assassino frio e perverso, foi, na verdade, um ato estratégico de defesa. Sua feiúra é a feiúra própria da guerra, nada mais que isso. Se o tenente fosse entregue vivo, entregaria todos os detalhes do cotidiano da tropa. Não poderia nem ser morto por tiro, pois o barulho poderia fazer com que os inimigos os localizassem. Foi algo necessário no momento, dentro do contexto da guerra que se travava. Além disso, se o Lamarca fosse assim tão perverso teria feito o mesmo com os soldados que prendeu para escapar do cerco da operação militar no Vale da Ribeira, ou então, como muitos achavam que era o que devia ser feito, contra o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, ao qual a ditadura não dava a mínima e cuja vida foi salva pelo capitão.
            O último ponto de incongruência do artigo é meta-textual, pois ele parte da análise sobre o autor, Reinaldo Azevedo. Como jornalista assumidamente conservador, Azevedo defende, entre outras coisas, a violência do Estado de Israel contra os palestinos e a violência do BOPE como a melhor forma de se combater o crime organizado. Tudo bem, é a opinião dele! O problema é o paradoxo que isso nos apresenta. Ou a violência é absolutamente abominável, ou ela é um mal necessário em determinados momentos. Azevedo, assim como eu, concorda com a segunda proposição. Só que ele, como já é de praxe, vê somente um lado da questão e comete esses erros infantis. A violência contra a Ditadura Militar é legítima, pois vai de encontro a um governo ilegítimo. E se os grupos de esquerda são terroristas, que dirá dos sionistas, tão aclamados pelo jornalista da Veja, que usurparam território alheio e que também mataram várias pessoas, como no atentado ao hotel King David, em Jerusalém, em 22 de julho de 1946, no qual morreram 91 pessoas, quase a quantidade de mortos da lista do Ternuma? Pergunta que nem Azevedo ousa responder.
            E para completar, existem os comentários dos leitores do blog, com muito mais barbaridades, como a defesa escancarada da Ditadura, exaltação ufana dos seus agentes, apologia da desigualdade social e criminalização dos movimentos sociais atuais.
            Por fim, devo dizer que o objetivo deste texto não é defender a violência pela violência. É mostrar que ela, infelizmente, às vezes é um mal necessário contra a tirania e a opressão. É uma atitude emergencial, que deve ser tomada quando todas as outras possibilidades não têm mais valia. Foi o que fez a esquerda nas décadas de 1960 e 1970. Hoje em dia, com a volta da legalidade democrática, os antigos guerrilheiros penduraram as chuteiras, ou melhor, os fuzis, e aceitaram as regras do jogo. Prova de que teriam feito o mesmo se não tivessem sido alijados do processo em 1964.

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