Uma
das grandes tentações dos pensadores da chamada modernidade, ou mesmo
pós-modernidade, é decretar o fim ou a morte das coisas. Já se decretou a morte
da filosofia, da história, do comunismo e até de Deus. Pretendo escrever um
artigo posteriormente sobre isso. Nesse momento quero me debruçar sobre um
texto do filósofo e professor português Desidério Murcho em que decreta outro
fim: o da política. (http://criticanarede.com/fimdapolitica.html)
O
autor começa explicitando o que ele chama de mito contemporâneo: o de que a
liberdade e a democracia são direitos fundamentais, sem os quais é impossível
viver. Os defensores desse mito considerariam meras exceções países como
Rússia, China, e até mesmo EUA, nos quais esses direitos são restringidos em
nome da riqueza, como nos dois primeiros, ou da segurança, como no último.
Na
verdade, não seriam meras exceções. Diz ele: “Pensar
que a liberdade e os processos democráticos são fins em si é talvez a grande
ilusão contemporânea, ilusão que bate na parede inamovível da mentalidade
pragmática e sem ideologias da generalidade da população dos países hoje mais
ricos.” Ou
seja, a maioria das pessoas, interessada somente em sua própria segurança e bem
estar financeiro, não se importa pelo regime político sob o qual vive, contanto
que essas duas coisas sejam mantidas. Por conseguinte, qualquer breve interesse
pela política por parte do povo, viria exatamente como uma busca delas.
Poderia-se então refutar a grande ilusão humana, trazida
até nós pelos gregos, passando pelos Iluministas: a de que seria natural do
homem o interesse pela política e de que se isso não ocorria era porque faltava
a esse homem a instrução e estabilidade necessárias. Ele continua: “A participação na vida pública não aumentou
na Europa, apesar de as pessoas terem agora a riqueza, o tempo e a instrução
para o fazer. Não o fazem, porque não estão interessadas em fazê-lo. Preferem
ver cinema ou futebol ou televisão, fazer compras, passar férias e
fins-de-semana na praia — enfim, mil coisas, mas não perder tempo com a vida
pública. O cadáver caminha ainda porque não se pára de ouvir falar na
importância da participação na vida pública, a que se chama cidadania.
Impõe-se isso como valor nas escolas e na televisão. E não funciona. Nada muda.
O acto mais simples de cidadania é votar, mas nem isso a generalidade das
pessoas fazem na Europa ou nos EUA.”
O autor faz uma constatação aperentemente fria de algo
que deveria ser analisado com mais profundidade. Sua problematização é
extremamente rasa. Ele deveria, antes de tudo, se perguntar: o que faz as
pessoas continuarem a ser indiferentes à política, mesmo possuindo instrução e
riqueza? O que as condiciona a isso? O autor esquece que a massa não é um ente
pessoal, concreto, individual. Não possui espontaneidade. O pensamento popular
é volúvel, condicionado que é pela imprensa e por outros reprodutores do
pensamento dominante. Veja o que ele diz:
“Basta fazer esta
pergunta para ver a raiz do desinteresse que as populações têm pela vida
pública. Têm desinteresse precisamente porque não acreditam que a sua
participação poderia fazê-los viver melhor — quer porque já vivem bem, quer
porque acreditam que todos os políticos são incompetentes para gerir a coisa
pública de modo a produzir mais riqueza e mais justiça.”
Ao dizer isso ele defende a idéia errada de que esse
pensamento seria inerente à população. Falta uma análise mais aprofundada sobre o processo
histórico-social que tornou as coisas assim. Falta também analisar o grau de realidade
disso na vida prática. O autor, ao dar status
de verdade inquestionável ao juízo popular que, repito, é condicionado pelos
discursos dominantes, exime-se de exercer sua função, que consiste, enquanto
filósofo, em analisar e questionar a realidade. Além disso, ele parece gostar
de modismos, como quando chama a Venezuela de regime populista, ou quando
desvaloriza os chamados intelectuais, sendo ele mesmo um deles.
E
não pára por aí. Veja-se, por exemplo, quando ele compara a atividade política
com a medicina. “Afinal, não vamos ao médico excepto quando estamos
doentes ou para prevenir a doença. Não damos valor intrínseco à medicina.” Ele esquece que assim como no caso
da medicina, a saúde política não é permanente. Não dá pra se confiar na natureza
humana. A realidade atual é assim, mas não será assim para sempre. O que se
deve fazer, e ele como filósofo tem papel preponderante nisso, é buscar soluções
para um novo pensar da vida pública.
O que se
apreende no final, é que Desidério defende o “despotismo esclarecido”, versão
menos antiga do conceito platônico de “governo dos filósofos”: “Desde que os
governantes não abusem do poder para benefícios pessoais ilegítimos e
megalómanos, nem para perseguir pessoas fanaticamente, não precisam de fingir
que estão interessados em alargar liberdades e imaginadas cidadanias — só
precisam de criar condições para que haja riqueza, consumo, bem-estar
económico, diversão, liberdade económica. (...) As novas
restrições à liberdade e à democracia não estão ao serviço da tirania brutal e
assassina; estão apenas ao serviço da estabilidade e da segurança que permitem
a riqueza.” Ou seja, deixe o governo com
quem entende, vá viver sua vida, relaxe e goze. “Será este o futuro político da humanidade? Não o modelo da democracia de gritaria, mas um modelo que não
se reja por maiorias, nem eleições, nem partidos de oposição, nem gritarias
ofensivas nos jornais, mas por competências de gestão económica arduamente demonstradas?” (grifos meus)
Estamos mais uma vez diante
daquela noção rasa de que a boa gestão da economia é a salvação do mundo.
Pensamentos como esse, de total ojeriza à democracia de verdade, inundam a
mente de certos “formadores de opinião”. Nós, que defendemos o fortalecimento
do regime democrático, devemos estar sempre atentos e tomar cuidado com esse
tipo de idéia, bonitinha na superfície, mas ocultando o que há de mais
retrógado em termos de gestão política.
Muito bom esse blog.
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