terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O DESPOTISMO ESCLARECIDO CONTEMPORÂNEO


            Uma das grandes tentações dos pensadores da chamada modernidade, ou mesmo pós-modernidade, é decretar o fim ou a morte das coisas. Já se decretou a morte da filosofia, da história, do comunismo e até de Deus. Pretendo escrever um artigo posteriormente sobre isso. Nesse momento quero me debruçar sobre um texto do filósofo e professor português Desidério Murcho em que decreta outro fim: o da política. (http://criticanarede.com/fimdapolitica.html)
            O autor começa explicitando o que ele chama de mito contemporâneo: o de que a liberdade e a democracia são direitos fundamentais, sem os quais é impossível viver. Os defensores desse mito considerariam meras exceções países como Rússia, China, e até mesmo EUA, nos quais esses direitos são restringidos em nome da riqueza, como nos dois primeiros, ou da segurança, como no último.
            Na verdade, não seriam meras exceções. Diz ele: “Pensar que a liberdade e os processos democráticos são fins em si é talvez a grande ilusão contemporânea, ilusão que bate na parede inamovível da mentalidade pragmática e sem ideologias da generalidade da população dos países hoje mais ricos.” Ou seja, a maioria das pessoas, interessada somente em sua própria segurança e bem estar financeiro, não se importa pelo regime político sob o qual vive, contanto que essas duas coisas sejam mantidas. Por conseguinte, qualquer breve interesse pela política por parte do povo, viria exatamente como uma busca delas.
            Poderia-se então refutar a grande ilusão humana, trazida até nós pelos gregos, passando pelos Iluministas: a de que seria natural do homem o interesse pela política e de que se isso não ocorria era porque faltava a esse homem a instrução e estabilidade necessárias. Ele continua: “A participação na vida pública não aumentou na Europa, apesar de as pessoas terem agora a riqueza, o tempo e a instrução para o fazer. Não o fazem, porque não estão interessadas em fazê-lo. Preferem ver cinema ou futebol ou televisão, fazer compras, passar férias e fins-de-semana na praia — enfim, mil coisas, mas não perder tempo com a vida pública. O cadáver caminha ainda porque não se pára de ouvir falar na importância da participação na vida pública, a que se chama cidadania. Impõe-se isso como valor nas escolas e na televisão. E não funciona. Nada muda. O acto mais simples de cidadania é votar, mas nem isso a generalidade das pessoas fazem na Europa ou nos EUA.
            O autor faz uma constatação aperentemente fria de algo que deveria ser analisado com mais profundidade. Sua problematização é extremamente rasa. Ele deveria, antes de tudo, se perguntar: o que faz as pessoas continuarem a ser indiferentes à política, mesmo possuindo instrução e riqueza? O que as condiciona a isso? O autor esquece que a massa não é um ente pessoal, concreto, individual. Não possui espontaneidade. O pensamento popular é volúvel, condicionado que é pela imprensa e por outros reprodutores do pensamento dominante. Veja o que ele diz:
            “Basta fazer esta pergunta para ver a raiz do desinteresse que as populações têm pela vida pública. Têm desinteresse precisamente porque não acreditam que a sua participação poderia fazê-los viver melhor — quer porque já vivem bem, quer porque acreditam que todos os políticos são incompetentes para gerir a coisa pública de modo a produzir mais riqueza e mais justiça.
            Ao dizer isso ele defende a idéia errada de que esse pensamento seria inerente à população. Falta uma análise mais aprofundada sobre o processo histórico-social que tornou as coisas assim. Falta também analisar o grau de realidade disso na vida prática. O autor, ao dar status de verdade inquestionável ao juízo popular que, repito, é condicionado pelos discursos dominantes, exime-se de exercer sua função, que consiste, enquanto filósofo, em analisar e questionar a realidade. Além disso, ele parece gostar de modismos, como quando chama a Venezuela de regime populista, ou quando desvaloriza os chamados intelectuais, sendo ele mesmo um deles.
            E não pára por aí. Veja-se, por exemplo, quando ele compara a atividade política com a medicina. “Afinal, não vamos ao médico excepto quando estamos doentes ou para prevenir a doença. Não damos valor intrínseco à medicina.” Ele esquece que assim como no caso da medicina, a saúde política não é permanente. Não dá pra se confiar na natureza humana. A realidade atual é assim, mas não será assim para sempre. O que se deve fazer, e ele como filósofo tem papel preponderante nisso, é buscar soluções para um novo pensar da vida pública.
            O que se apreende no final, é que Desidério defende o “despotismo esclarecido”, versão menos antiga do conceito platônico de “governo dos filósofos”: “Desde que os governantes não abusem do poder para benefícios pessoais ilegítimos e megalómanos, nem para perseguir pessoas fanaticamente, não precisam de fingir que estão interessados em alargar liberdades e imaginadas cidadanias — só precisam de criar condições para que haja riqueza, consumo, bem-estar económico, diversão, liberdade económica.  (...) As novas restrições à liberdade e à democracia não estão ao serviço da tirania brutal e assassina; estão apenas ao serviço da estabilidade e da segurança que permitem a riqueza.” Ou seja, deixe o governo com quem entende, vá viver sua vida, relaxe e goze. “Será este o futuro político da humanidade? Não o modelo da democracia de gritaria, mas um modelo que não se reja por maiorias, nem eleições, nem partidos de oposição, nem gritarias ofensivas nos jornais, mas por competências de gestão económica arduamente demonstradas?” (grifos meus)
Estamos mais uma vez diante daquela noção rasa de que a boa gestão da economia é a salvação do mundo. Pensamentos como esse, de total ojeriza à democracia de verdade, inundam a mente de certos “formadores de opinião”. Nós, que defendemos o fortalecimento do regime democrático, devemos estar sempre atentos e tomar cuidado com esse tipo de idéia, bonitinha na superfície, mas ocultando o que há de mais retrógado em termos de gestão política.   

Um comentário:

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